O Festival de Locarno recebe hoje em competição Baan - Casa, de Leonor Teles, momento significativo da vitalidade do cinema português neste ano. Uma história de encontros e desencontros numa Lisboa que se confunde com Banguecoque. É a confirmação da jovem cineasta ribatejana que já venceu o Urso de Ouro.
Leonor Teles
BAAN
A confirmação de um projeto de cineasta: Leonor Teles. Hoje no importante Festival de Locarno passa em competição a sua primeira longa-metragem de ficção, Baan - Casa,um périplo romântico entre Portugal e a Tailândia. Filme que também é a descobertade uma atriz em estado natural, Carolina Miragaia, rosto de uma transbordante verdade e uma espécie de reflexo da própria cineasta. Na essência, é isso mesmo: uma personagem-cineasta num jogo de reflexos. Reflexos com marcas pessoais, reflexos com influências de cinema. Baan está do lado da vénia a uma memória de olhares cinematográficos asiáticos. O altar a Wong Kar-wai é o "mood" do empreendimento, mas há toda uma estética decorrente de uma maneira de fazer asiática.
O fascínio thai é então a locomotiva de uma história sobre L, uma jovem arquiteta emLisboa a contas com a ressaca do fim de uma relação. A partir de momento em queconhece acidentalmente K, uma mulher canadiana de descendência tailandesa, algomuda. Lisboa torna-se uma síntese de tempo e de espaço em que uma esquina na Av. Almirante Reis pode ir dar diretamente a um beco em Banguecoque. Quando Ksubitamente desaparece, um vazio surge na vida de L - afinal, a nossa casa é um estadode espírito.
Baan - Casa ainda não tem estreia comercial em Portugal agendada, sendo possívelapenas acontecer após fazer o circuito dos grandes festivais internacionais. Nãodeixa de ser um feito estar já na competição de um festival de lista A, sobretudodepois do Urso de Ouro em Berlim com Balada de Um Batráquio (2015), curta-metragem de manifesto de orgulho cigano e da boa receção da longa documentalTerra Franca (2018).
Aos 31 anos, é um tesouro evidente do nosso cinema, alguém com um olhar de câmara que não é apenas um caso de destreza de diretora de fotografia (Leonor é diretora defotografia de obras como Verão Danado, de Pedro Cabeleira, e Viver Mal/Mal Viver, de João Canijo). Uma abordagem com valores estéticos muito para além do efeito da "atração asiática" - a sensualidade daquelas cores é singular. Em Baan tudo é íntimo, tudo é subtil, mesmo quando se sentem nas ideias de soluções de montagem algumas indecisões de primeira obra numa narrativa que sente de perto as dores de uma vida adulta destes tempos, em que uma jovem em Lisboa com um curso tem de viver num quarto. Nesse sentido, é filme com assinatura geracional: personagens envolvidas num silêncio digital, muito ecrã de telemóvel, muito discurso desta nova urbanidade. A ajudar no impecável enlevo visual está uma banda-sonora que compreende os tempos dramáticos: de Chaka Khan a Prince, canções que entram comum poder tremendo.
Em Locarno, festival amigo do cinema português (esta edição já mostrou o novo de Basil da Cunha, Manga d'Terra), esta casa que tem todas as portas para ganhar corpo de coqueluche. Uma Lisboa/Banguecoque projetada como cidade imaginada que também serve de miradouro de corações quebrados. Um filme que apetece beijar com força.
Leonor Teles tem atrás de si uma produtora-cineasta que apostou forte no seu percurso, Filipa Reis, de Uma Pedra no Bolso, aqui também atriz.
O que pode significar uma competição em Locarno para uma primeira obra comoesta?
O Festival de Locarno é muito interessante para o cinema de autor, um festival que tem tido nomes como Pedro Costa, Hong Sang-soo, Wang Bing, etc. É muito bom para a Leonor estar em competição, é um grande motivo de orgulho para nós.
De que forma é que se acompanha o percurso de uma jovem cineasta como aLeonor? Será uma questão de fé?
Tem sido incrível. O seu percurso como cineasta confunde-se um pouco com o meu, como produtora. Ela foi a primeira pessoa de quem produzi um filme sem ser em co-produção. Mas é mesmo um prazer estar a produzir os seus filmes desde a primeira curta feita fora da escola, até esta longa. Foi muito bonito vê-la a filmar, e este filme está resolvido de forma brilhante e intuitiva. Estou também muito feliz por fazer parte de Baan!
Sei que não foi nada fácil esta produção com rodagem na Ásia, sobretudo por terapanhado a pandemia...
Podemos mesmo utilizar a palavra mirabolante. Baan foi escrito em 2019, ainda antes da pandemia, tendo uma longa interrupção. Era para ter sido rodado entre Lisboa e Macau e acabou por ser entre Lisboa e Tailândia por não se conseguir entrar na China durante muito tempo. Nesse sentido, foi muito complexo, embora a Leonor tenha ultrapassado esse problema muito bem.
Como produtora tem estado com um ritmo imparável. Recentemente lançou o novo de Marco Martins, o seu próprio filme Légua, realizado com Miller Guerra, e tem outros projetos em conclusão. Essa pluralidade de projetos gere-se bem ou é um puzzle infernal?
Tem sido um prazer... E na Pedra no Sapato tenho trabalhado com um conjunto de cineastas dos quais tenho muito orgulho. Tem sido uma loucura financiar tantos projetos, alguns deles antes da pandemia. Estes últimos anos foram muito cheios. Cheios, mas com muito prazer. Esse ritmo infernal é dos bons, dá mesmo muito prazer. Agora o que é preciso é estrear bem estes filmes e decidir como continuar... Esta segunda metade de 2023 será uma altura de balanço - estou muito feliz com isso.