O arranque da 72ª edição de Locarno foi marcado pelo humor especial de João Nicolau e o espírito 25 de Abril de "Prazer, Camaradas", mas ainda vem aí Pedro Costa e a sua Vitalina Varela. Mais do que nunca, Locarno é um festival que acredita no cinema português.

Diário de Notícias
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08/11/2019

Num ano de transição, o Festival de Locarno teve um arranque de contrastes. É como se a equipa de programadores da nova diretora Lili Hinstin, estivesse ainda numa encruzilhada de experiências. Isso ou nos primeiros dias está-se perante o efeito de espera de Vitalina Varela, o novo de Pedro Costa, o mais aguardado filme da competição e grande pretendente ao Leopardo de Ouro.


A verdade é que os filmes a lutar pelo palmarés máximo estão a desiludir, enquanto que as estreias mundiais na secção Piazza Grande (supostamente obras com um apelo mais generalista...), pelo contrário, surpreendem.


A exceção maior parece ser Technoboss, de João Nicolau, o primeiro filme português em competição. Uma comédia delirante que retoma o tema comum do realizador: a possibilidade do amor, neste caso através de um estudo de personagem de um simpático diretor comercial de uma empresa de instalação de equipamentos tecnológicos de segurança


Technoboss tem a delicada virtude de não se parecer com nada, a não ser com a insolência do próprio estilo pardacento de Nicolau. Profundo na sua leveza, vive igualmente das canções que este sexagenário canta. E canta como sonha ou como pensa. As letras das melodias falam do seu estado de alma e dos seus sonhos. São cantos de cisne literais. Cantos que encantam e que embalam por uma teimosia que está do lado dos românticos e dos teimosos.


Nicolau fez um filme livre, com falhas, mas sempre único num tom que é só dele e que já atravessava o anterior, John From , mesmo que metade da sua graça esteja no encanto carismático do seu protagonista, o improvável Miguel Lobo Antunes, o homem que dirigia a Culturgest. Uma ideia de gentleman português com uma voz doce que encanta e que é cinema. Uma estreia do arco-da-velha!


Fora de competição, outro filme português feliz, Prazer, Camaradas, de José Filipe Costa, onde vemos portugueses e estrangeiros a contar as suas experiências de voluntariado logo a seguir ao 25 de Abril em cooperativas no Ribatejo.


Filipe Costa fez um documentário "ficcionado" de investigação mas sempre carregado de jogo lúdico - os intervenientes interpretam-se a si próprios quando chegaram às cooperativas e às quintas e escolas em 1974/75. Cinema do real cheio de vida e sem medo de pegar pelos cornos temas como o machismo português, a herança do analfabetismo e um certo falhanço de toda esta experiência revolucionária. Os "camaradas" de Aveiras de Cima são sobretudo bem divertidos.


De Itália, na competição, na sexta-feira passada chegou Maternal, de Maura Delpero, drama realista rodado em Buenos Aires e todo ele situado no interior de um convento que acolhe mães solteiras. A história anda à volta de uma noviça chegada de Itália que sente um forte apelo maternal após ficar a cuidar de uma menina negligenciada pela sua mãe. Exemplo infeliz de um cinema naturalista com cauções de reflexão social, filmado sem mágoa nem garra. Depreende-se que apenas foi selecionado para ajudar na quota da igualdade de género. De pulsão feminina um filme tem muito pouco.


A outra desilusão inicial vem de França e assume discurso feminista: Douze Mille, da atriz Nadège Trebal , filme de vinhetas de géneros (vai do drama social ao musical pós-moderno) que conta o percurso de um casal com dificuldades financeiras na França de hoje. À exceção da intensidade de Arieh Worrthalter (ator que já tinha deslumbrado no belga Girl, de Lukas Dohnt), predomina uma insipidez estilística e uma mensagem de afirmação feminina com um moralismo discutível.


Mas é precisamente na Piazza Grande, secção que se orgulha de apresentar todas as noites na Cidade Velha a maior projeção ao ar livre na Europa, que Locarno tem visto o melhor cinema. E aí chamada de atenção para o brilhante thriller alemão 7500, de Patrick Vollrath , com Joseph Gordon Levitt, todo passado no interior de um cockpit de um avião comercial ameaçado por terroristas islâmicos. Uma experiência sensorial de medo e veracidade que é também um exame à claustrofobia do espetador. Suspense puro e clássico pelo olhar de um cineasta que deverá ter agora passaporte para voos em Hollywood.


7500 ensina-nos que o medo vem das perceções culturais e dos nossos preconceitos, mas é ainda uma lição de como num espaço fechado a mise-en-scéne pode ser um jogo criativo de composição de ângulos. Curiosamente, a Amazon, que tem através da FIlmnation os direitos internacionais do filme, proibiu Gordon Levitt de falar com a imprensa não suíça ou alemã.


Referência ainda para o filme de abertura do festival, Magari, de Ginevra Elkann, conto de famílias trocadas numa Itália invernal. Aqui sim, sentiu-se uma força feminina genuína.

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