Azul, a cor empregue sem discriminações tanto ao céu como ao mar, e cuja união resulta num horizonte único, duas partes confundidas entre si, tornando a sua desassociação impossível. Naquele determinado ponto, ambos os elementos fundem num só, aquilo que mais próximo teremos da chamada invisibilidade, o que não é mais que a redução de um todo. 

Cinematograficamente Falando ...
Text
05/11/2022

Azul, a cor empregue sem discriminações tanto ao céu como ao mar, e cuja união resulta num horizonte único, duas partes confundidas entre si, tornando a sua desassociação impossível. Naquele determinado ponto, ambos os elementos fundem num só, aquilo que mais próximo teremos da chamada invisibilidade, o que não é mais que a redução de um todo. 


Para Ágata de Pinho e a sua protagonista-espelho, o azul, também ele a servir de título da sua curta-metragem, é um estado de espírito a alcançar, um fim prescrito à sua existência - ou será antes não-existência? Com “Azul” seguimos o corpo mapeado por cicatrizes de difícil cura, e ainda mais profundo, aquelas que residem na alma de quem, conturbadamente, não ambiciona prolongar o seu sopro de vida. Entendemos que neste filme, algo intimista, de uma jovem em prazo de validade, ser ou querer ser invisível converte-se mais do que um desejo, uma missão, ou será antes inquietação?


Com estreia mundial no Festival Internacional de Roterdão, e com uma passagem na última edição do Indielisboa, “Azul” é uma curta com um mundo inteiro no seu interior, esse que trespassa o meramente terreno, sobressaindo o emocional como existencial e porque não dimensional, tendo o corpo, que nos últimos anos, o Cinema lhe apropriou como viagens pelas suas “metamorfoses”. O Cinematograficamente Falando … falou com a atriz e agora emancipada realizadora sobre este peculiar projeto sobre a crise da nossa vivência. 


Confesso que senti ao longo da sua curta um ambiente melancólico e igualmente angustiante, e visto ser protagonizado por si, este desejo de desaparecer, talvez figurativamente, talvez fisicamente, vai ao encontro de um lado autobiográfico, ou até de confissão?


Antes de mais, não é um desejo mas uma crença: a personagem realmente crê que vai desaparecer quando fizer 28 anos. Se fosse um desejo, poderiam existir outras possibilidades ou vontades que substituíssem o desejo anterior, mas sendo uma crença, entramos no campo daquilo que é inexplicável mas que não deixa de ser entendido como verdade única — o que, neste caso, se mantém até determinado ponto.


Sim, este primeiro filme é autobiográfico mas sob uma roupagem ficcional. Não me interessou expor a minha vida, interessou-me sim pegar em certas experiências da minha vida e tratá-las com elementos ficcionais misturados com elementos autobiográficos/documentais, mas entendendo sempre estes géneros cinematográficos num sentido lato, expansivo, ao invés de delimitador.


O Azul, não só do título, mas presente simbolicamente nos diferentes elementos, seja a cor como invisibilidade, seja o mar que sufoca a protagonista, seja até mesmo a fotografia que adquire iguais tons. Como surgiu a ideia do Azul como símbolo do conflito existencial desta personagem? 


A cor azul como símbolo é, para mim, uma leitura que surgiu muito mais tarde e que, na verdade, continua a ser assim lida mais por quem vê o filme do que por mim. 


A relação com a cor azul enquanto paisagem (e não tanto enquanto simbologia) tinha de estar presente no filme, encontrando diversas transfigurações para a sua presença, pois é uma cor que, como sabemos, carrega já tantos sentidos e simbologias. Eu tentei não pensar nessa carga simbólica e cingir-me, genuinamente, à minha relação específica com esta cor. A cor azul aqui tem para mim um sentido muito directo: naquela altura, eu procurava o azul do mar e o do céu, pela sua abstracção e, simultaneamente, pelo seu sentido de absoluto. É mais uma relação directa de sensações/emoções, do que propriamente de simbologia, que para mim implica uma certa racionalização. 


Sobre 28, não somente a idade que a nossa protagonista deseja desaparecer, mas pelo vislumbre da sua vida, ainda confinada a uma certa austeridade e dependência familiar. É sugerido, de facto, mas existe em Azul uma intenção de rebelião contra uma cada vez procrastinada emancipação à idade adulta? Como vê essa independência tardia? Já agora, também gostaria de mencionar que “28” é também abordado na recente longa-metragem de Adriano Mendes (“28 ½”), representado como uma idade de impasse. 


A crença de que ela vai desaparecer aos 28 anos condiciona tudo o resto: porque haveria emancipação, planos, desejo de futuro, se ela sabe quando a sua existência vai terminar? Claro que há muitas outras questões subjacentes a esta crença — e é o que vamos percebendo com o filme, mas, para a protagonista, esta é a primeira verdade, absoluta e inquestionável… No entanto, sim há na mesma rebelião sob a superfície que, à medida que a data do seu aniversário se aproxima, se torna mais angustiante. 


A expressão livre dessa rebelião, ou a emancipação, ou a “independência tardia”, como colocas, só pode surgir se a personagem sobreviver à sua crença e quiser finalmente encontrar o seu lugar no mundo.


Por outro lado, há uma camada que está sempre subjacente que é a da frustração em relação ao que é ser-se adulto nesta sociedade… A rebelião contra isto é, creio, potente e necessária. 


Sobre o corpo algo abstrato da protagonista, e à sua maneira performativa, existe em “Azul” uma aptidão ou fantasia do body horror? Como é a questão dos corpos relacionada com o estado emocional da personagem? 



Há uma questão muito concreta em relação ao corpo desta protagonista, uma questão de saúde que, invariavelmente, alterou a relação dela com o próprio corpo pois teve de aprender a habitá-lo de toda uma nova maneira — e essa procura por, de facto, habitar o seu corpo (daí o lado mais performativo), não é pacífica e não cessou. 


Depois, ao aliar a isto a crença do desaparecimento aos 28 — um desaparecimento físico, concreto e material também, em que o corpo vai desaparecer — a relação que ela tem com este só poderia ser bastante específica. 


Tenho, sem dúvida, “um fraquinho” por body horror e espero poder explorar mais esse lado no meu trabalho futuro. 


Quanto a novos projetos? Existe desafio para se aventurar no território da longa-metragem? 


De momento, encontro-me a desenvolver uma longa-metragem para a qual consegui, recentemente, financiamento para a escrita. Entretanto, como esse processo será ainda longo e moroso, espero escrever e realizar mais curtas.

umapedranosapato.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile